Onde o Vento Canta

Onde o Vento Canta

Nem sempre a nossa casa

tem morada certa

nem sempre o vento canta

nas paredes da infância

nem sempre o nosso lar 

mora em nós.

  • Viajar
    Viajar Sair de um lugar ir indo, indo como se houvesse um destino uma direção viajar palmilhar uma quilha já navegada pelo sol que nos imagine no caminho mais curto de volta ao coração
  • Sonho sem destino
    Sonho sem destino Na ausência da tua fala aprendi a cair sem destino a sonhar no vazio aconchegada pela  memória das borboletas que floresciam quando sabias o caminho que te trazia embriagado de poesia até à minha porta.
  • Paz de algodão
    Paz de algodão Paz de algodão  Nos olhos de uma criança  deveria demorar-se a preguiça de uma tarde de sol o perfume de uma seara de alfazema o voo perfeito de uma andorinha Das mãos  de uma criança  deveria escorrer o canto do cuco da manhã  o suco maduro da melancia o azul do ceu de Van Gogh No coração  de uma criança  deveria tatuar-se a esperança puro do futuro a coragem nua de um abraço  o algodão doce da paz.
  • Vida à janela
    Vida à janela Vida à janela Há  janelas que contam histórias  Há janelas que são vidas abandonadas Há janelas onde o vento grita, a neblina adormece onde não  há  sol crepitar do fogo café acabado de fazer Há  janelas solitárias  que convidam a entrar que contam histórias  esquecidas Há janelas à espera de um -Bom dia, cheguei! Há janelas que são vidas
  • Partida
    Partida Partida O que fica de uma partida não anunciada de uma solidão  há muito sentada? Uma dor viajada um vazio esburacado  nada
  • Saudade
    Saudade A saudade é um beijo que se embrulha em seda delicado mas faminto de saciar a tua boca A saudade é um beijo que abala na asa do vento com pressa de chegar e vestir o teu dia A saudade é um beijo que madruga na tua pele.
  • Noite
    Noite A noite adormeceu ao nascer do dia sombria distante vazia As aves partiram levaram os sonhos do pôr do sol que todo o dia fugia fugia fugia da noite dormia Quem dera fosses aurora  da minha noite por um dia
  • Recomeçar
    Recomeçar Recomeçar Recomeça ainda que os teus passos sejam brandos e conheçam o vazio Recomeça ainda que a tua noite adormeça antes de abraçar o dia Recomeça e corre corre corre a apanhar o sol que já escorre pela calçada
  • Sombras peregrinas
    Sombras peregrinas Tombadas no caminho as sombras arrastam-se em busca de um albergue para os seus sonhos Peregrinam um caminho duro que morde os calcanhares de quem ousa atravessar a paisagem acesa pelos filhos do sol
  • O caminho
    O caminho O caminho faz-se caminhando parando a cada aguarela respirando a frescura da manhã fotografando o silêncio  que ora nas igrejas vivas O caminho faz-se a passo de caracol, a voo de melro subindo e descendo absorvendo os matizes respirando o peso da distância O caminho vai-se pintando de borboletas que bailam de cegonhas que vigiam de girassóis que se curvam quando passamos O caminho perfuma-nos todos os sentidos.
  • Não sei o que sentir
    Não sei o que sentir Não sei o que sentir sei que tenho o teu sorriso plantado na minha boca sei que o teu respirar salpica de maresia a minha pele sei que os teus braços são  velas coloridas do meu barco sei que os meus passos tropeçam embevecidos de amor no teu caminho bordado de sol Não sei o que sentir com o que sinto
  • Janelas
    Janelas Janelas Janelas são amigos fiáveis  que, perante portas fechadas, nos plantam no seu jardim e nos regam para florirmos. Janelas são olhos viajados que, num mundo insano, nos bordam a ponto cruz de verde e amizade.
  • A viagem depressa envelhece
    A viagem depressa envelhece Uma criança amanhece ancorada numa bagagem de correias herdadas  subtilmente desmanchadas mas que acorrentam o horizonte  apenas vislumbrado no seu sonhar. A viagem depressa envelhece o seu olhar que entorpecido não alcança a madrugada da partida ou da chegada e está a fazer-se tarde cada vez mais tarde. Fotografia: Sérgio Moreira Texto: Margarida Oliveira
  • Grades
    Grades Nem sempre as gradesvisíveissão as que mais nosaprisionamo que mora em nósmuitas vezes nosenlaçaprendenum véumais difícil de despirdo que uma burca.
  • Zona protegida
    Zona protegida Em ebulição, mergulhaste  sem adivinhar a intensidade  da erosão que causarias nas pradarias protegidas do meu ser Não sonharias a magnitude  do primeiro sismo com hipocentro no meu coração. Não despertarias os vulcões  adormecidos do meu sentir  Não aflorarias os movimentos tectónicos da minha pele Não houve mortes ainda
  • Portas guardadas
    Portas guardadas Portas guardadas Há portas que guardamVidas esquecidasQue ninguém reclama… Há portas com guardiõesPerdidos no tempoQue, esquecidos,Não sabem jáO que guardam.. Há portas que guardamo futuro queNunca chega às horasEsperadas…
  • Vazio
    Vazio O vazio é o fimOnde podes rasgar-teNa solidão da dor. O vazio és arriscadamente tuOnde te podes semearDe estrelas cadentes no caminho. O vazio é o infinitoOnde podes plantarO perfume fresco do manjericão. O vazio é o princípioOnde podes colherO mistério deslumbrado. O vazio está pleno de ti…
  • Vestígios de vida
    Vestígios de vida Quando ousamos sair de nós ainda que respirar nos rasgue e da vida sobeje apenas um ai quando olhar os destroços de sonhos deserdados dói mais por se ter amado ainda assim, podemos resgatar a beleza nas pétalas de uma flor esquecida na noite.
  • Oásis
    Oásis Chilreiam felizes Pássaros estivais no seu oásis… Mal sabem que o sol Não nasce para todos, Aquece apenas alguns, Só se põe nos sonhos dos eleitos. Quem me dera ser pássaro enlouquecido E beber o sonho dourado No horizonte do teu oásis.
  • Esplanada
    Esplanada É tarde, tão tarde… A noite é já recolhida, Mas os meus pensamentos vagueiam ainda pela Esplanada submissa Ao sol e à gente. É tarde, tão tarde… Ainda assim, penso em ti, Luxuriosa e poeticamente… Quão humano será Amar-te assim, tão despidamente?
  • Viver devagar
    Viver devagar Quero viver à velocidade Da lágrima que se espraia Dentro do meu rosto Em busca do teu colo Quero viver à velocidade Da memória de uma tarde Platónica que plantou O meu amor à beira mar. Quero viver à velocidade De um sábado longínquo Em que soube que era eterno O brilho refletido no teu olhar Quero viver à velocidade Da pétala que, da tua janela, Baila com o meu perfume Que ficou preso ao teu caminhar Quero viver, viver devagar
  • Escrever
    Escrever Não sei para que escrevo nao sei sequer porquê sei que o voo das aves o cheiro da maresia se entranham em mim e me levam à tua procura. A busca, sempre a busca da memória futura da pele.
  • Liberdade
    Liberdade Liberdade é ser mais branco, Num imenso mundo azul E ser sombra na luz do céu E ser ninho habitado de vazio E ser asa que não voa E ser canto desafinado, Porque não?! Liberdade é ser caminho torto Vagueando na imensa rectidão, E ser livre na prisão escolhida É ser amor na imensa solidão. Liberdade é amar rasgando a pele É pensar o apaixonado coração. Liberdade é sim, liberdade é não…
  • Ressurreição
    Ressurreição Todos os dias morri talvez um pouco mais todos os dias me reergui talvez um pouco de menos definhando à sombra vazia dos sonhos que não vivi. Talvez um dia enterre espantada o amor com que me sufoquei e morrendo, talvez demasiado nesse dia cinzento, à pressa renasça sedenta de firmamento, e desenfreada, cresça  o que me prometi.
  • Não é fácil
    Não é fácil Não é fácil partir  Deixar-te no caminho  Que calcetaste de silêncios  Não é fácil debandar-me  Do chão granítico  Que esculpiste em mim  Não é fácil voar  Com as asas partidas  De gaivota em terra  Não é fácil ser sonho  Atado a uma pedra  Sem direção
  • Esplanada revisitada
    Esplanada revisitada A esplanada onde nos inventamos juntos Jamais será a esplanada onde me reinvento sozinha. O aroma a café e a chocolate quente Enche o meu palato de vazio Desaconchega-me em nós Desassossega-me num futuro que não há. Procurar-te num tempo suspenso Leva-me a um lugar fossilizado Numa chávena de fundo perdido Por onde escorreram os nossos beijos líquidos. A esplanada onde nos inventamos juntos Jamais será a esplanada onde me esqueço de nós.
  • Personagens
    Personagens Pessoas e seus cenários Com entradas vazias Em papéis por desvendar. Pessoas e suas máscaras Bailarinas ao ritmo De músicas por criar. Pessoas e seus abandonos Nos bastidores da vida Em ensaios por marcar. Pessoas, figurantes falidos De dramas irreais, De sonhos por representar. Personagens, apenas pessoas, Rentes ao quase despertar.
  • Quase partida…
    Quase partida As árvores vivem de pé, Ainda que o vento as curve, Ainda que o sol as cegue Ainda que o medo as ondule. As árvores não são quase vida, As árvores não quase amam, As árvores apenas fazem vénias Ao voo dos sonhos do azul.
  • Será a matemática…
    Será a matemática… Se tudo é matemática, Será a matemática tudo? Haverá matemática nas curvas Da vida, nas retas Do nosso caminho? Haverá tangentes nas nossas escolhas? Serão intersecções as nossas relações? Serão os triângulos verdadeiramente equiláteros? Serão notáveis os limites, até dos perímetros? As fracções não serão sempre irredutíveis? Ou dependerão do prisma? Poderemos equacionar os dias Sem Ihes dividir as noites? Que raio, como poderemos Viver em semicírculos, tantas vezes à tangente, Tão à tangente, Sem nos subtrairmos?
  • “Mulher”
    “Mulher” Mulher, gueixavestida de sangue,despida de esperança,contempla a vidaque escorre pelas gradesdo jardim egoísta,carcereiro da tua beleza! Mulher, flor sem perfume,roubado pela brisaque dança ao sabordo sol entardecido,Salta a gradevem viajar o olharperfumado de luzcom que iluminas o mundo. Mulher, ave livre,o teu voo emoldura o sonho feminino,essência da humanidade!”
  • Rugas
    Rugas Nem o teu abraço Me alisou as rugas Que o teu silêncio Lavrou em mim… Ah, como sonho Plantar em ti o desejo De adormeceres O teu sono no meu..
  • Nunca é tarde demais
    Nunca é tarde demais Não é tarde demais Quando o meu céu Nasce do teu chão Extasiado de azul Não é tarde demais Quando o teu olhar Incendeia o meu colo Deserto de amor Não é tarde demais Quando o teu abraço Refresca a minha pele Inflamada de silêncio Não é tarde demais Quando te reencontras No meu templo Alheado de futuro Nunca é tarde demais.
  • Sinédoque do amor
    O amor é uma sinédoque: Amamos o todo naquela parte Cristalizada no sal de uma gota, Como se num dia de vento Tivéssemos arado o mar todo. O amor é uma sinédoque: Amamos a parte naquele todo Multiplicado o oásis no deserto, Como se de uma vida cálida Tivéssemos cartografado toda a areia. O amor é uma sinédoque: Amamos o fim pelo princípio E esquecemos o princípio do fim…
  • Onde o vento canta
    Onde o vento canta Nem sempre a nossa casa tem morada certa nem sempre o vento canta nas paredes da infância nem sempre o nosso lar  mora em nós.